É impressionante como uma parcela significativa da elite letrada brasileira não consegue engolir a presença de Lula na presidência. Mais do que uma oposição fundamentada em razões consistentes para criticar o governo, boa parte da oposição a Lula me parece fruto de preconceito deslavado - menos contra a figura de Lula do que contra a carga simbólica que sua trajetória representa.
Somos um país históricamente marcado pela valorização demasiada da cultura bacharelesca e, ao mesmo tempo, por quatro séculos de escravidão que acabaram por desqualificar completamente o trabalho manual. A primeira constituição brasileira - a carta do Império de 1824 - estabelecia o voto censitário e preservava o escravismo, com o argumento de que libertar escravos atentaria contra o direito à propriedade privada. A primeira constituição da República - a de 1891 - proibia o voto do analfabeto e, ao mesmo tempo, não atribuia ao estado brasileiro o dever de alfabetizar a população. O Brasil, em resumo, foi pensado por sua elite política e econômica a partir da perspectiva da exclusão das massas populares do exercício da cidadania e do acesso ao saber formal
Lula, nesse sentido, foi o presidente que mostrou a essas elites que o Brasil pode, para elas, dar errado. Sim, porque até agora, na perspectiva dos donos do poder, o Brasil vinha dando certo. É simples: a exclusão social brasileira não foi resultado de políticas fracassadas. Ela foi pensada e praticada como um projeto de Estado-Nação. A chegada de Lula ao poder e a aprovação popular ao seu governo tem uma dimensão simbolica única na trajetória brasileira - é o tapa na cara da elite bacharelesca que se sente detentora do saber-poder desde sempre e não admite o sucesso do sujeito sem educação formal que, como homem comum [daí a sua grandeza] que é [somos], ocupa o cargo outrora destinado aos fidalgos do bacharelismo.
O horror de muitos adeptos da cultura bacharelesca - a tal da cultura formal - ao presidente do Brasil é o pânico diante da ameaça ao monopólio do saber instituído que essas elites sempre prezaram e exerceram. O recado que a trajetória de Lula manda aos doutores é a expressão viva da bela meditação de Vinicius de Moraes em seu Canto de Oxalufã:
Você que sabe demais
Meu pai mandou lhe dizer
Que o tempo tudo desfaz
A morte nunca estudou
E a vida não sabe ler
O beabá
Não dá pra ninguém saber
Por que é que há
Quem lê e não sabe amar
Quem ama e não sabe ler?
Você que sabe demais
Mas que não sabe viver
Responda se for capaz:
Da vida, quem sabe lá?
Da morte, quem quer saber?
Oxalufã, o Senhor do pano branco, avisa aos sabichões que o mistério do homem se instaura no tempo que a todos iguala no caminho da Noite Grande - a morte, afinal, nunca estudou e a vida não sabe ler. O conhecimento formal nunca foi sinônimo de conhecimento vital, sabedoria de vida, revela o poeta em sua prece ao grande orixá.
As elites sofisticadas brasileiras, os sabichões intelectuais, as viuvas do príncipe da sociologia FHC, os intelectuais orgânicos da plutocracia paulista, os donos dos bancos acadêmicos que vêem seus tronos doutorais ameaçados pela adoção do sistema de cotas sociais e raciais no Brasil, os conhecedores de verbos certos e letras mortas, não compreendem o sucesso de Lula por um simples motivo: É a eles que o poeta - ridicularizado por membros dessa mesma elite quando se aproxima da Umbanda e do Candomblé - se dirige quando indaga:
Por que é que há
Quem lê e não sabe amar
Quem ama e não sabe ler?
A resposta, senhores, ao mistério da popularidade de Lula está na pergunta que o poeta faz ao orixá que nos acolhe debaixo de seu alá funfun e guarda os segredos do mundo na ponta do Opaxorô, o cajado sagrado. Durante quinhentos anos o Brasil foi governado pelos letrados.
Começou a ser, com Lula, governado por quem ama.
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